“Já não sou deste mundo, mas não á mau afastar-se a gente da praia com
os olhos na gente que fica” (Memorial de Aires).
Ao ensejo do transcurso no dia
21 de junho deste ano do sesquicentenário de nascimento do grande
Machado de Assis, os meios de comunicação renderam-lhe justas e
merecidas homenagens, realçando as diversas facetas de sua fecunda
atividade literária. Contudo, existe um aspecto ainda pouco conhecido de
sua personalidade: o nosso maior escritor foi também um fervoroso
enxadrista!
Sob a influência do extraordinário maestro português Arthur Napoleão –
um virtuose do piano e um dedicado cultor da arte de Caíssa – Machado de
Assis iniciou-se nos segredos do tabuleiro e passou a ser um assíduo
aficionado, fazendo do xadrez um sedativo espiritual e um salutar
instrumento de convivência com diletos amigos.
Em recente apanhado com o
título de “Rua Cosme Velho, 18” – endereço onde morou o escritor desde a
sua fase áurea até a morte – o cronista Francisco de Assis Barbosa faz
desfilar fatos e hábitos relacionados com Machado de Assis, lembrando
que o Barão de Vasconcelos era seu parceiro de xadrez e cobrava as
jogadas mais demoradas do escritor, recebendo como desculpa,
infalivelmente, a frase: “Que quer, senhor Barão, tenho a compreensão
lenta”...
Já o polígrafo Raymundo
Magalhães Júnior, no terceiro volume de sua alentada biografia “Vida e
Obra de Machado de Assis”, transcreve os seguintes chistosos versos,
remetidos da localidade fluminense de Friburgo por Joaquim Serra,
exortando ao seu amigo Machado a deixar as preocupações do dia a dia,
desde os quefazeres do Ministério da Viação até a constante prática
enxadrística, no sentido de subir para o retiro serrano:
“Machado, sobe a serra, que torrado
ficarás desta vez!
Manda o ministro à fava, meu
Machado,
manda à fava o Clube de Xadrez
e vem passar aqui neste montado
pelo menos um mês!”
Reconhecido como “o chefe superior e
inconteste de nossa literatura”, a ponto do crítico Cornélio Pena chegar
ao extremo de dizer: “No princípio, era o nada; depois, veio Machado de
Assis; depois, outra vez o nada” – o imortal criador da singular Capitu,
“de olhos de ressaca”, entrou no mundo dos trebelhos sem maiores
pretensões, a não ser a de dispor de mais uma fonte de estesia e
entretenimento, e terminou tendo – ó força do destino! – uma
participação destacada no primeiro torneio de xadrez efetuado no Brasil!
Na precursora revista “Xeque-Mate”, em maio
de 1925, o seu companheiro de tertúlias enxadrísticas Caldas Viana –
idealizador da “Variante Rio de Janeiro” na abertura Ruy Lopez e durante
muitos anos reverenciado com uma prova clássica de âmbito nacional –
deixou o seguinte testemunho:
“Assim foi que, em janeiro de 1880,
Arthur Napoleão pôde reunir em sua casa na Rua Marquês de Abrantes (Rio
de Janeiro), um grupo de admiradores para um pequeno torneio, no qual
tomou parte Machado de Assis, a mais pura glória das letras brasileiras.
Esse torneio de família jamais terminaria, mas merece ser assinalado
como o primeiro ensaio de armas”.
A respeito dessa histórica
competição, é digno de ser recordado o registro feito pelo próprio
Arthur Napoleão, que foi também pioneiro como colunista de xadrez, em
sua seção na “Revista Musical”, em 17 de janeiro de 1880.
“Está-se efetuando atualmente um
torneio de xadrez entre seis dos melhores amadores desta corte. Cada um
tem a jogar quatro partidas com o outro e, no resultado final, será
considerado vencedor o que maior número de partidas tiver ganho. A
situação dos jogadores nesta data é a seguinte: 1º, Machado de Assis,
com 6 pontos; 2º, Arthur Napoleão, com 5,5; 3º, Caldas Viana, com 4,5;
4º, Carlos Pradez, 4.5; 5/6º, I. Navarro e Dr. Palhares, com um ponto
cada”.
Por estímulo recebido também de
Arthur Napoleão, o autor de “Brás Cubas” dedicou-se ainda à composição
de problemas, figurando na famosa coletânea “Caissana Brasileira”,
organizada por aquele incansável divulgador, reunindo as melhores
produções de autores brasileiros”.
Na revista carioca “Xeque”, em
julho de 1947, o saudoso problemista mineiro J. B. Santiago publicou uma
página denominada “Ramalhete de Saudades”, destacando alguns trabalhos
daqueles que foram, segundo sua expressão, “semeadores do passado, que
transformaram nossos tabuleiros em roseirais da poesia do xadrez”.
Desse ramalhete, extraímos o
problema estampado no diagrama, de autoria de Machado de Assis, no qual
“As brancas jogam e dão mate em dois lances”.
É possível que alguns
leitores mais exigentes considerem ingênua essa composição, deixando de
atentar para a circunstância de ter sido feita numa época em que o
xadrez no Brasil ensaiava os primeiros passos e, mesmo assim, conseguiu
atrair a sensibilidade e inteligência do genial predestinado Joaquim
Maria Machado de Assis!
(Ronald Câmara, in
Diário do Nordeste, 25.06.1989).
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